




moda e futurismo
A corrente artística que conhecemos como Futurismo explorou diversa linguagens e lugares para sua expressividade. Nesse sentido, a moda teve seu espaço não apenas enquanto produção vestível, mas também como discurso. É importante retomarmos o contexto histórico no qual o movimento se encontra para entender a potencialidade dessa área criativa na expansão do conteúdo ideológico proposto pelos artistas italianos desse período.
A moda do século XX já estava vindo de um caminho de mudanças significativas em suas produções, oriundas dos movimentos vanguardistas e da proposta modernista que transitava pelo imaginário dos criadores daquele momento. Os futuristas não ficam fora disso! A revolução do vestuário italiano, acompanhou uma revolução ainda maior: política e ideológica, que estava em ascensão no início do século com um forte caráter nacionalista. Por esta razão, a moda receberá um forte apoio do programa totalitarista de Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista, que se utilizará muito do movimento como um mecanismo de representação das esferas do poder. Assim, esse trabalho percorrerá os estudos sobre a moda futurista e o diálogo estabelecido entre os vestíveis e a arte, apresentando em seguida seu uso e os desdobramentos oriundos do paralelismo com os ideais fascistas vigentes na sociedade italiana do início do século XX.
No tocante a moda, os futuristas tinham uma posição muito contrária às roupas cujas estéticas eram ligadas à França ou à Inglaterra, até então hegemônicas no campo vestível. Eles reconheciam que a moda era parte atuante nas transformações das relações que eram promovidas em sociedade e criticavam a desvalorização do produto interno em comparação com os internacionais. Ao pensar em “futurismo” é quase pleonasmo dizer que eles buscavam seguir a proposta do “novo”, não era interessante seguir tradições, nem tão pouco regras já convencionadas. A ruptura com os padrões de modelagem das peças foi muito significativo na criação de moda do início do século e na valorização da produção têxtil italiana.
Nesse sentido, os futuristas precisavam entender as demandas modernistas que se construíram em sociedade. Sabemos que o movimento possui uma relação profunda com os desdobramentos da Revolução Industrial, que possibilitou uma série de avanços tecnológicos, potencializando a produção em massa e a geração de capital. Assim, os futuristas retomarão esse período percebendo a dinâmica dos processos que ele gerou: a criação de máquinas, crescimento das fábricas, uso de automóveis, entre outros. Esta dinamicidade ligada ao novo mundo industrial, para os futuristas, seria um dos pilares dos quais poderiam se utilizar para romper com a tradição normativa proposta pelas sociedades burguesas anteriores. Com isso, assim como percebemos bastante movimento nas artes visuais futuristas, isso não poderia ser diferente nas peças vestíveis.
Devido ao contexto atrelado às correntes ideológicas fascistas e aos desencadeamentos da Revolução Industrial, percebemos temáticas muito próximas a temas relacionados à guerra, ligados a elementos presentes no mundo moderno, como movimento, violência e velocidade. Assim, a moda futurista buscou trazer vitalidade e força para que aquele que a usasse atendesse a essas características que se construíam na sociedade modernista. As cores passaram a ser mais luminosas, rompendo com a sobriedade do século anterior, o movimento corporal ganhou uma maior atenção por meio de padronagens geométricas que não mais moldavam o corpo (principalmente o feminino), mas garantiam uma maior liberdade para que os movimentos realizados por este não sofressem algum tipo de restrição; o equilíbrio era visto com maus olhos pelos futuristas, que utilizavam da própria geometria para desconstruir a modelagem padronizada da época, a tida “moda burguesa” e quanto às cores neutras, eram consideradas tristes e depreciativas, signo de uma sociedade apática e sem criatividade.
De modo geral, a contribuição dos futuristas para a moda foi significativa, embora em seus meandros haja uma série de questões passíveis de problematização e que serão discutidas ao longo deste trabalho. A exaltação do progresso técnico andava lado a lado da busca pela construção do rejuvenescimento da Itália, um país com novos valores, novas posturas e nova aparência. Somado a isso, no livro Moda: moderna medida do tempo, a autora Angélica Adverse nos apresentará um pensamento de Walter Benjamin que nos será muito útil para a maior compreensão da temática futurista:
“A moda não é só a moderna “medida de tempo”; ela incorpora a mudança na relação entre sujeito e objeto que resulta da “nova” natureza da produção de mercadoria. Na moda, o fantasmagoria das mercadorias adere o mais rende à pele. Ora, a roupa fica, bem literalmente, na fronteira entre o sujeito e o objeto, o individual e o cosmos. Seu posicionamento certamente dá conta de sua significância emblemática através de toda história”
Partindo disso, a autora nos chama atenção para como a arte, juntamente à moda, podem potencializar o núcleo temporal que transita entre o eterno e o efêmero (ADVERSE, 2012, p. 48), ligando a estética futurista com a esfera social e política de então, e afirma que “o efêmero tornou-se uma categoria comum à arte e à moda, uma categoria instrumental que permitia ao artista prefigurar uma constante revisão da arte, dos procedimentos artísticos, da experiência estética e da práxis cotidiana”. Típico de vanguarda, as produções artísticas desse período propuseram a reinvenção não apenas dos valores vigentes, mas de si mesmas. De acordo com Argan em A Época do Funcionalismo (2012), o plano de modernização social é como uma força motriz que projeta novos constructos a partir de uma nova experiência estética, o que o futurismo, inegavelmente, o fez, sendo considerado o primeiro movimento essencialmente vanguardista pelo autor, embora não compartilhamos da mesma ideia neste trabalho.
Um dos principais nomes na moda futurista é Giacomo Balla. O artista, que contribuiu também com suas pinturas, trouxe por meio de suas produções e manifestos, uma nova concepção sobre a estrutura e estética nos vestíveis. Ele é quem escreve sobre “a roupa anti-neutra” e “o manifesto da roupa masculina futurista”. Ambos essenciais para entendermos a lógica no campo da moda pregada pelo movimento. O primeiro, como aponta Priscyla Abreu em Arte e moda de vanguarda: o futurismo italiano, Balla insere a teoria futurista da cor como forma de transgressão à neutralidade do terno negro so século XIX e dá uma maior atenção aos princípios plásticos de assimetria e desconstrução da forma em seus estudos para a criação do terno futurista. O artista acredita que o caminho ideal para a concepção de uma peça futurista seja a abolição da harmonia simétrica de corte, apoia o deslocamento funcional dos bolsos, uso de diagonais, uso de geometria e formas abstratas. Sendo assim, a autora pontua que “o corpo se tornou suporte e a roupa se tornou uma obra que podia se mover” (ABREU, 2014, p. 44).
De acordo com Angélica Adverse, Balla buscava em seu manifesto propor uma aproximação entre a roupa e a arquitetura futurista dos centros urbanos, se atentando para o espírito e humor citadino oriundo da nova dinâmica com as cores e formas. Para ele, a dinamicidade do espaço era o que garantiria a organização do meio coletivo em torno desse núcleo plástico, com as cores e as formas se unificando na dinâmica do movimento. No entanto, o manifesto de Giacomo Balla não estava completo aos olhos de Marinetti (tido como o fundador do futurismo), uma vez que este acreditava que as peças deveriam representar mais as transformações da incorporação de traços da mecanização e choques gerados pela sobrecarga de estímulos técnicos da industrialização. De acordo com Adverse, Marinetti queria algo mais provocativo e polêmico. Enquanto isso, Volt acrescenta propondo o uso de materiais potencialmente tecnológicos e revolucionários que possibilitassem uma nova orientação do corpo no espaço social (ADVERSE, 2012, p. 104). A autora acrescenta:
“A roupa futurista deveria fomentar o desejo de destruição e velocidade para aguçar a lógica da obsolescência industrial, tornando-a mais efêmera, mutável e destrutiva que o tradicional sistema da moda. A renovação radical da moda deveria não apenas, pela aproximação com a arte, modificar sua estrutura comercial: a nova moda futurista deveria tornar-se um instrumento para a guerra, pois prepararia o homem, potencializando sua essência belicosa e fazendo da agressividade sua melhor qualidade”
Dessa maneira, percebe-se que a postura adotada por Balla não foi “destrutiva” nem violenta o bastante para Marinetti, o que ocasionou em um novo manifesto sobre a roupa anti-neutra que se mostrou contraditório, uma vez que agrupava os estudos sobre a crítica aos códigos de credibilidade gerados pelo uso do vestuário acromático de Balla com o posicionamento político nacionalista e belicista proposto por Marinetti. Este ideal caminhava um tanto desalinhado com o projeto da arte-moda futurista de atrelar imaginação à funcionalidade, proposta essa feita por Giacomo Balla.
Em seu manifesto sobre a roupa futurista masculina, o artista aponta a necessidade de ruptura com a moda burguesa e seus cortes rígidos e em contrapartida apresenta seus desenhos geometrizados e com cores fortes, com o objetivo de apresentar o dinamismo e a vivacidade do futurismo. Ele afirma que “a humanidade sempre usou roupas tristonhas, ou a armadura pesada ou o manto sacerdotal ou a capa. O corpo do homem sempre foi entristecido pela cor negra, aprisionado por cintos ou sobrecarregado por drapejamentos”. Com esse manifesto, Balla buscou apresentar suas ideias acerca das modificações necessárias ao traje, propondo uma visualidade lúdica para criação de um novo modelo: o homem futurista.
Dito isso, é impossível não passar por uma de suas mais significativas criações. Partindo da monotonia da moda masculina, Giacomo se volta para o terno, peça muito comum aos homens, criticadas ironicamente por futuristas, que buscaram desconstruir a imagem do homem preso às tradições da moda inglesa ou dos ideais românticos e melancólicos presentes no século anterior. Assim, o terno futurista revolucionou em elementos estéticos, modificou as regras que orientavam sua criação e modelagem. Não existe mais harmonia, nem tão pouco formas simétricas; abotoamentos passam a se deslocar pelas diagonais e o homem não tem que ser “elegante”, mas sim, lúdico, vívido. Para isso, o artista passou a realizar estudos morfológicos, se afastou do enfoque na anatomia corporal e procurou priorizar o dinamismo óptico e plástico, potencializando a “força linear”. Além disso, a preocupação com o estudo de variações cromáticas somavam-se aos detalhes modulares que se alteravam pela peça, proporcionando o dinamismo e uma visualidade própria do futurismo, que garantia, por sua vez, movimento e a plasticidade esperada.
É importante lembrar que o início da crítica aos ternos masculinos se deu dois anos antes da publicação do manifesto de Giacomo Balla, quando os futuristas Luigi Russolo, Carlo Carrá, Marinetti, Umberto Boccioni e Gino Severini ironizaram a vestimenta. Dessa maneira, cabe citar um trecho do manifesto sobre o traje masculino feito por Balla:
“É preciso destruir o terno passadista epidérmico, descorado, fúnebre, decadente tedioso, anti-higiênico. Abolir nos tecidos: as cores apagadas, graciosas fantasias neutras semi-escuras e desenhos de listas xadrezinho de bolinhas. Corte e confecção: abolição simétrica de linhas estáticas, uniformidades de ridículos debruns, quinquilharias etc. Acabar de uma vez com os desenterramentos que são os hipócritas ternos de luto. As ruas cheias de gente, reuniões, teatros, cafés, são de uma tonalidade desoladora, funerária, porque os ternos refletem o mau humor entristecido dos passadistas de hoje.”
Para além disso, no tocante à moda feminina, Balla se volta para a silhueta em “H”, que será retomada por artistas posteriores, como Pierre Cardin e Paco Rabanne. Esta temática será melhor trabalhada no Manifesto Futurista da Moda Feminina, escrito por Vincenzo Fani Ciotti, mais conhecido como Volt. Neste documento percebe-se a intenção de se abandonar o passado, além da crítica ao processo criativo de estilistas, sugerindo que quem devia assumir o lugar da criação eram artistas, aproximando a moda da arte.
De acordo com Vanessa Bortulucce, em seu texto O manifesto Futurista da moda feminina, a análise que fez de Volt consiste na percepção da necessidade que a mulher tivesse a coragem imprescindível aos novos tempos quando usasse as novas formas de vestimenta futuristas; a coragem que permeiava todos os âmbitos criativos da vanguarda (BORTULUCCE, 2011, p.20). Além disso, Volt afirma que “a moda feminina nunca será extravagante o suficiente”, mantendo questões de criação em aberto para novas possibilidades, além de defender o uso de materiais acessíveis em sua produção, potencializando, a certo modo, a expansão dos ideais futuristas, uma vez que mais mulheres poderiam fazer uso das peças, e por conseguinte, de seus ideais, de maneira consciente ou não.
Outro representante que merece destaque é Ernesto Michahelles, conhecido pelo seu pseudônimo, Thayaht. O artista cria em 1919 a conhecida Tuta, que continha uma proposta nacionalista e intenções futuristas de modernização. Esta peça merece um considerável destaque, visto que foi importante não apenas dentro da produção de moda, mas também como forma de concepção de design. A peça uniu informações sobre o público alvo e sobre mercado, e teve por objetivo unir funcionalidade e dinamismo. Seu nome é um neologismo equivalente a expressão “para todos” e como aponta Adverse, a letra “T” vem da estrutura morfológica de sua modelagem.
Diferente de Balla, Thayaht concebe essa peça no período pós-guerra, sob um contexto em que a Itália passava por uma crise financeira oriunda deste momento. Dessa forma, o artista propõe o reaproveitamento das roupas, concebendo-as de maneira mais racional. Assim, ele priorizou em sua produção um estilo que fosse perene, dado as condições econômicas e políticas instaladas na Itália. Para além disso, é importante pensarmos na concepção dessa peça como vestível nacional, tendo em vista a proposta de sua perenidade justaposta a intenção de criar nos italianos um ideal coletivo que permitisse a instauração efetiva dos ideais futuristas.
Outras peças que também merecem destaque são os coletes de Depero. Os “coletes futuristas” foram projetados entre 1923 e 1924 e apresentados durante a turnê Futurist Theatre. Há registros de Marinetti usando os coletes no evento, ostentando-os. O artista atuou como pintou e design gráfico, aderindo ao movimento futurista no ano de 1914. Defendeu ao lado de Giacomo Balla a ideia de obra de arte total: o homem moderno cercado de objetos.
Além de Depero, temos o artista Tulio Crali que acreditava que as peças de roupa poderiam criar uma performance gráfica no espaço (ADVERSE, 2012, p.109). As formas a composição com vértices juntamente a ação cinética nas peças caminhavam juntas com os contrastes e com a anatomia do corpo, havia a exploração das diagonais e uso da assimetria, do desequilíbrio. No que tange a dinamicidade de suas peças, o artista buscou trabalhá-la por meio da própria desconstrução que apresentava em suas concepções vestíveis. Para além disso, buscava sintetizar ao máximo elementos como ornamentos, texturas e cores, o que virá a ser apontado por Angélica Adverse como uma possível antecipação da proposta minimalista que vem mais adiante com a arte contemporânea. É possível traçar uma similaridade de alguns croquis de Crali com as roupas dadaístas que nos remetem àquele estilo típico cabaré, assim como alguns estudos de Thayaht. No entanto, não aprofundaremos tanto neste assunto por ir além do nosso objeto de pesquisa prioritário.
Por fim, no tocante a referências, percebemos a retomada do futurismo nas décadas de 1960 com produções de Pierre Cardin e André Courrèges. É normal que no imaginário mais leigo, quando fala-se em futurismo as pessoas logo sejam remetidas às roupas com estéticas espaciais e não as produções propriamente ditas do início do século XX, estéticas essas muito presentes em filmes de ficção científica, por exemplo, que inclusive começam a ganhar maior destaque nas produções audiovisuais. Não há mal algum nisso. Neste período, concepções futuristas foram retomadas e inseridas sob um novo contexto social e historiográfico.
Uma das características mais marcantes do movimento futurista é seu caminho par-a-par com a violência muito ligada à exaltação da guerra, que na década de 1920 em diante se refere à Primeira Guerra Mundial. Dito isso, tem-se o recorte temporal de 1945 a 1991, em que duas grandes potências desenvolvem ao longo dos anos a famosa corrida espacial. Estados Unidos e União Soviética… Parece interessante haver produções nesse sentido, afinal. A produção de moda se volta ao futurismo atrelada, não à toa, ao contexto de Guerra Fria. Daí o futurismo como representação de visualidades ligada ao espaço. Na década de 1960 tem-se vestíveis significativos como as Criações em Lâminas de Alumínio, de Paco Rabanne, Vestido de Papel, de Ossie Clark e Celia Birtweel, e mais adiante, a coleção Primavera/Verão de 2006/2007 de Hussein Chalayan. Outro exemplo dessa nova estética de viés futurista se faz presente no seriado Barbarella, com a atriz Jane Fonda em 1968 (Brasil).